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Mostrando postagens de 2013

Fala o homem piedoso

"Deus nos ama, pois foi ele quem nos criou! "Foi o homem quem criou Deus!", replicai vós, sutilmente. E não haveria ele de amar aquilo que criou? Haveria ele de negar por quê nos criou? Eis que coxeia e mostra o casco fendido do diabo." NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência . p.28

Criança Desconhecida

"Criança desconhecida e suja brincando à minha porta, Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos. Acho-te graça por nunca te ter visto antes, E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra criança, Nem aqui vinhas. Brinca na poeira, brinca! Aprecio a tua presença só com os olhos. Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhecê-la, Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez, E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar. O modo como esta criança está suja é diferente do modo como as outras estão sujas. Brinca! pegando numa pedra que te cabe na mão, Sabes que te cabe na mão. Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior? Nenhuma, e nenhuma pode vir brincar nunca à minha porta." PESSOA, Fernando.

Poema 20

"Posso escrever os versos mais tristes esta noite. Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada, e tiritam, azuis, os astros ao longe". O vento da noite gira no céu e me canta. Posso escrever os versos mais tristes esta noite. Eu a quis, e às vezes ela também me quis. Em noites como esta, eu a tive em meus braços. Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito. Ela me quis, às vezes eu também a queria. Como não ter amado seus grandes olhos fixos? Posso escrever os versos mais lindos esta noite Pensar que não a tenho. Sentir que a hei perdido. Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela E o verso cai na alma como no pasto o orvalho. Que importa que o meu amor não pôde guardá-la? A noite está estrelada e ela não está comigo. Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe. Minha alma não se contenta em tê-la perdido. Como para acercá-la meu olhar a busca. Meu coração a busca, e ela não está comigo. A mesma noite faz branquear as mesmas árvores Nós, os de então

Trecho de "A Balada do Cárcere de Reading"

"Às seis horas limpamos nossas celas, Às sete tudo é espera... E o vibrar e o voltear de uma asa poderosa Sobre o cárcere impera, Pois o Senhor da Morte - o bafo frio e forte - Para matar viera. Em real pompa não passou, nem cavalgou Corcel branco-lunar. O alçapão corredio e três jardas de fio Bastam para enforcar: Co'a corda da vergonha veio a ação medonha O Arauto praticar. Éramos como um bando em pântano tateando Na suja escuridão: Não ousávamos dar vazão à nossa angústia, Dizer uma oração; Algo morrera em nós, e o que morrera fora A Esperança... a Ilusão. Pois a cruel Justiça do Homem Segue avante, Vai firme, não trepida: Tanto ela mata quanto mata o forte Em sua mortal corrida... É com tacão de ferro que ela mata o forte A hedionda parricida! Grossa de sede a língua, à espera das oito horas Sentamo-nos à toa, Porque o bater das oito é o sino do Destino Que nos amaldiçoa E tem a seu serviço um laço corrediço Para a alma ruim e a boa. Fic

Trecho de "O Espelho"

"Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades perde naturalmente metade da existência, e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira." ASSIS, Machado de.

Quem disse que eu me mudei?

"Não importa que a tenham demolido: A gente continua morando na velha casa [em que nasceu" QUINTANA, Mário.

Fragmento 117

        "A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa. Dizem que não há nada mais difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a mão sem literatura, o gesto, ascendentemente enrolado em ordem, com que aquela figura abstracta das molas ou de certas escadas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos lembremos que dizer é renovar, definiremos sem dificuldade uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca conseguir acabar-se. A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir assim, porque supõe que definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um circulo virtual que se desdobra a subir sem nunca se realizar: Mas não, a definição ainda é abstracta. Buscarei o concreto, e tudo será visto: uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma. Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda q

Inania Verba

"Ah! quem há-de exprimir, alma impotente e escrava, O que a boca não diz, o que a mão não escreve? — Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve, Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava… O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava: A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve… E a Palavra pesada abafa a Idéia leve, Que, perfume e clarão, refulgia e voava. Quem o molde achará para a expressão de tudo? Ai! quem há-de dizer as ânsias infinitas Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta? E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo? E as palavras de fé que nunca foram ditas? E as confissões de amor que morrem na garganta?!" Olavo Bilac

Velho Tema VI

"Lembra!” diz-me o passado. “Eu sou a aurora E a primavera, o olhar que se enamora De quanto vê pelo caminho em flor; Para o teu coração cansado e triste É recordar-me — o único bem que existe... Eu sou a mocidade, eu sou o amor.” “Vive!” diz-me o presente. “Alma suicida, Louca, não peças à árvore da vida Mais que os amargos frutos que ela tem; Deixa a saudade e foge da esperança, Faze do pouco que teu braço alcança O teu mesquinho, o teu único bem.” “Sonha!” diz-me o futuro: “O sonho é tudo, Eu sobre as tuas pálpebras sacudo A poeira da ilusão! ... sonha e bendiz! Eu sou o único bem porque te engano, E o desgraçado coração humano Só com o que não possui é que é feliz.” Eu ouço os três, e calo-me: desisto De quanto me prometem, porque nisto Todos se enganam, todos, menos eu: Beijo dos lábios da mulher amada, O único bem és tu! Não há mais nada... E tu és de outro, e nunca serás meu!" Vicente de Carvalho

Há Metafísica Bastante em Não Pensar em Nada

"Há metafísica bastante em não pensar em nada O que penso eu do mundo? Sei lá o que penso do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso. Que idéia tenho eu das cousas? Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos? Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma E sobre a criação do Mundo? Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos E não pensar. É correr as cortinas Da minha janela (mas ela não tem cortinas). O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! O único mistério é haver quem pense no mistério. Quem está ao sol e fecha os olhos, Começa a não saber o que é o sol E a pensar muitas cousas cheias de calor. Mas abre os olhos e vê o sol, E já não pode pensar em nada, Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos De todos os filósofos e de todos os poetas. A luz do sol não sabe o que faz E por isso não erra e é comum e boa. Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores? A de serem verdes e copadas e de terem ramos E a de dar fruto na sua hora, o qu

Um poema de Jack Kerouac

"Em vão, em vão! Tanta chuva a cair Dentro do mar Sem telegramas Hoje somente as folhas Estão caindo É primavera Ai, toda essa bagagem Para suspiros A árvore parece um cão Latindo para o céu As árvores não podem ir buscar Um copo d’água Desci da minha torre de marfim E não achei o mundo Nuvens de Iowa Uma seguindo a outra À Eternidade" KEROUAC, Jack. Tradução: José Lira Retirado do site Interpoetica

Nostalgia do Presente

"Naquele preciso momento o homem disse: «O que eu daria pela felicidade de estar ao teu lado na Islândia sob o grande dia imóvel e de repartir o agora como se reparte a música ou o sabor de um fruto.» Naquele preciso momento o homem estava junto dela na Islândia." BORGES, Jorge Luis. A Cifra . 1981.

O Segredo das Mil e Uma Noites

"Estou me entregando ao prazer ocioso de reler As mil e uma noites. O encantamento começa com o título que, nas palavras de Jorge Luis Borges, é um dos mais belos do mundo. Segundo ele, a sua beleza particular se deve ao fato de que a palavra mil é, para nós, quase sinônimo de infinito. "Falar em mil noites é falar em infinitas noites. E dizer mil e uma noites é acrescentar uma além do infinito." As mil e uma noites são a estória de um amor - um amor que não acaba nunca. Não existe ali lugar para os versos imortais do Vinícius (tão belos que o próprio Diabo citou em sua polêmica com o Criador) : "Que não seja eterno, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure..." Estas são palavras de alguém que já sente o sopro do vento que dentro em pouco apagará a vela: declaração de amor que anuncia uma despedida. Mas é isto que quem ama não aceita. Mesmo aqueles em quem a chama se apagou sonham em ouvir de alguém, um dia, as palavras que Heine escreveu para

Eterno Retorno

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"E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de ca

Tu, Místico

"Tu, místico, vês uma significação em todas as cousas. Para ti tudo tem um sentido velado. Há uma cousa oculta em cada cousa que vês. O que vês, vê-lo sempre para veres outra cousa. Para mim, graças a ter olhos só para ver, Eu vejo ausência de significação em todas as cousas Vejo-o e amo-me, porque ser uma cousa é não significar nada. Ser uma cousa é não ser susceptível de interpretação." PESSOA, Fernando.

Pouco me Importa

"Pouco me importa. Pouco me importa o quê? Não sei: pouco me importa." PESSOA, Fernando.

O Pajem

"Sozinho de brancura, eu vago - Asa De rendas que entre cardos só flutua... - Triste de mim, que vim de Alma pra rua, E nunca a poderei deixar em casa... Paris, novembro de 1915" SÁ-CARNEIRO, Mário de.